Breve crônica dos caminhos que se entrecruzan ; 18/VI/2009 - Márcio Marciano
...Encerrando a programação, o palco principal do TJA – literalmente o palco, pois foi dessa perspectiva que o público assistiu ao espetáculo – recebeu o solo de Norberto Presta, “Via Rosse”, uma bela e inteligente declaração de amor ao teatro.
Em tempos de espetacularização da vida privada e, mais do que isso, da própria intimidade, salta aos olhos a ironia com que Presta conduz, através de seu olhar, o olhar do espectador para o reflexo de si mesmo, num exercício metalingüístico que embaralha as fronteiras entre teatro e realidade.
Não se trata aqui da emblemática dúvida renascentista sobre o que é real e o que é ilusão, mas das formas de elaboração que a subjetividade contemporânea utiliza para dar conta da fragmentação violentíssima da sensibilidade humana imposta pelo avanço tecnológico.
Em cena a presença de “alguém” (seria demasiado considerar tratar-se de um sujeito ou uma personagem) que, convencido de que já não é esse “alguém”, conversa em tom quase intimo com o público sobre o momento em que, olhando-se no espelho descobriu entre perplexo e aterrorizado que não se reconhecia a si mesmo.
Está posto o mote pirandelliano que permitirá a Presta tecer um sutil e complexo ensaio sobre a atormentada sensibilidade contemporânea, incapaz de entender, sobretudo, as denegações de si mesma.
Estabelecida sem mediações desnecessárias a regra clara do jogo, o ator convidará o público a rever seu próprio mecanismo de elaboração da memória através da superposição de narrativas que, mal se constituem se plasmam em novas narrativas, numa multiplicidade de vozes que nada tem a ver com sintomas esquizofrênicos, mas que aportam bifurcações “borgeanas” para o entendimento da experiência de desterritorialização em nível social e de cada um em particular.
A sutileza e comicidade patética deste jogo, no entanto, só é possível graças ao pleno domínio que o ator Norberto Presta tem de seus recursos expressivos. Ressalte-se que o ator nascido na Argentina, mas crescido na Itália, mescla intervenções em italiano com falas ditas num português “único”.
Chama atenção a mestria com que o ator funde, através de um meticuloso trabalho de composição corporal e vocal, a voz do “alguém” que se presentifica a vista do público com a voz dos demais fantasmas que povoam sua memória e que cobram materialidade na cena.
O jogo de diluição da fronteira que separa o ator do plano ficcional se completa vigorosamente quando este, ao tragar em cena, literalmente, algumas doses de conhaque e uma garrafa inteira de vinho, assimila a bebida e organicamente reage à sua ingestão. O tensionamento que esta atitude implica relativiza o tom fabular da narrativa e redimensiona o diálogo com o público: afinal, de quem se trata, que “eu” é o senhor do discurso?
Pirandello já havia no início do século XX formulado em cena as conseqüências das descobertas da psicanálise e a confluência dessa disciplina com as artes. Presta, reescreve “pirandellianamente” sua própria trajetória de desidentificação e desmemória de forma a nos oferecer, simpática e bem-humoradamente, uma dolorosa e atualíssima reflexão sobre quem de fato cada um de nós pensa que é...
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Breve crônica dos caminhos que se entrecruzam – 19/VI/2009
Espaço fecundo de compartilhamento da experiência estética, as Demonstrações de Trabalho, que acontecem no dia seguinte à apresentação dos espetáculos têm se constituído como o esteio conceitual do Zona de Transição. Os questionamentos surgidos na fruição dos espetáculos ganham aí desdobramentos inesperados e o confronto de idéias lança um novo olhar sobre os aspectos técnicos da criação da cena e suas implicações no campo das escolhas éticas e ideológicas.
Foi assim na demonstração “Prisão para a liberdade”, quinta-feira, 18 de junho, com Carlos Simioni, e ontem na descontraída e produtiva conversa com Norberto Presta, que apresentou na véspera o solo “Fragmentos de vidas divididas”. O ator e diretor discorreu sobre os princípios que orientam seu trabalho, e comentou sua opção por um teatro que se fundamenta no jogo que nasce da fricção entre a presença do ator e o público durante o acontecimento teatral.
Antes de formular retoricamente um dos conceitos basilares de seu processo criativo, Presta convidou o público presente a que participasse de um “jogo, uma brincadeira de crianças”, no que foi prontamente atendido pela maioria. Todos em círculo, pediu que repetissem em coro certas seqüências sonoras e físicas como palmas acompanhadas de batidas rítmicas dos pés no chão, ou das mãos em partes do corpo. Depois de alguns instantes, passou a alternar esses comandos com questões aritméticas simples como 7 x 9. Queria com isso chamar a atenção para os mecanismos distintos que utilizamos para responder a esses estímulos.
Seu intuito era o de demonstrar como operam distintamente os hemisférios do cérebro humano, de um lado os mecanismos de resposta reflexa a estímulos e de outro o raciocínio puro. Segundo Presta, seu trabalho se baseia no intercâmbio entre os hemisférios, na troca fluida e constante de informações entre raciocínio e associação. Algo que ele sintetiza com a frase “pensar com o corpo e dançar com o cérebro”.
Essa introdução serviu para abordar o que julga seu maior interesse no teatro hoje e que consiste em investigar o fenômeno da presença do ator frente ao público, sem mediações ficcionais previamente calculadas e totalmente sob controle, como os efeitos teatrais de cenografia, luz e caracterização que de, de certo modo, comprometem o livre curso de sua subjetividade e impedem que se estabeleça com a platéia o jogo de interlocução entre a sensibilidade desta e a verdade do ator em situação, na fronteira entre espaço ficcional e realidade teatral...
Márcio Marciano
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